O papa tem corpo
Daqui para a frente, todos os pontífices terão
oficialmente um corpo, serão mortais. Sê, pois, bem-vindo à raça humana,
"herr" Joseph
"... Para governar a barca de são Pedro e
anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor tanto do corpo como do
espírito; vigor que, nos últimos meses, diminuiu em mim de tal forma que hei de
reconhecer minha incapacidade para exercer bem o ministério que me foi
encomendado."
Essa foi uma das mais revolucionárias declarações
deste início de século. Ao anunciar sua renúncia, Bento 16 -agora papa emérito,
recolhido em Castel Gandolfo- manifestou uma constatação que, embora óbvia,
tomou de surpresa a tantas pessoas (dentre as quais não me incluo) mundo afora.
Que constatação foi essa? Que, como todos os seres
vivos, também ele tem/é um corpo. Tal como você, eu, tal como Jesus. A
corporeidade é nosso inarredável ponto de partida, pela qual somos sensíveis,
relacionais e históricos.
Descer do pedestal talvez tenha sido penoso para
Sua Santidade, que passou boa parte de sua vida olhando para a corporeidade
alheia, em geral nela apontando o que considera mazela e desvio. Enquanto isso,
instalou-se numa platônica torre de marfim em que manejava com maestria ideias
e doutrinas distantes dos principais dilemas dos companheiros e companheiras de
humanidade.
Eis que -à semelhança de casais homossexuais,
usuários de camisinha e de anticoncepcionais, perpetradores e vítimas de
pedofilia, padres ansiosos por casar, mulheres com vocação ao sacerdócio,
jovens engolfados em aluvião hormonal e todas as demais pessoas- o papa parece
exclamar: "Olhem, tenho um corpo!". E poderia acrescentar:
"Estou com idade avançada. É difícil compreender isso?".
É, sim, e vamos demorar a interpretar esse gesto,
ainda mais que, nas aparições posteriores, Bento fez alusões cifradas à
hipocrisia, à divisão na igreja, a águas agitadas e a ventos contrários. A que,
ou quem, se referia, concretamente?
Outro aspecto da corporeidade papal: velhice, dor e
doença são sinais de finitude, mas também fontes de iluminação (lembro-me do
príncipe Sidarta). Mesmo que os teólogos elaboradores de dogmas insistam que
sumos pontífices são infalíveis (ok, na doutrina católica), no momento em que
as articulações doem, a próstata incha e dificulta o singelo urinar, o coração
exige ajuda tecnológica e uma periódica troca de pilhas, e isso tudo desemboca
em invencível fadiga, então é que se vê que papas são falíveis, sim, num nível
mais elementar que o doutrinal.
Contra a crença que os curiais tentaram incutir no
final da vida de João Paulo 2º -agonia exposta em praça pública!-, o papa não é
um holograma, um ectoplasma, um semideus ou um símbolo. Não, ele só se torna
significativo quando assume radicalmente nossa comum condição humana: para dar
esse passo, Bento 16 recebeu uma ajuda do próprio corpo.
A abdicação ao trono papal só pode ser considerada
grandiosa ou profética porque ocorreu num ambiente enrijecido. Nas modernas
corporações e instituições políticas, a troca de poder é esperada e desejável.
Comparando, piscar o olho não é digno de comemorações, a não ser que ocorra num
paciente após coma prolongada. Essa renúncia foi um sinal de alento, mas
mostrou o nível de doença na cúpula católica.
Agora, a boa notícia: com seu gesto, o papa emérito
se situa no meio de nós. Daqui para a frente, todos os pontífices terão
oficialmente um corpo, serão mortais como os demais seres vivos. Sê, pois, bem
vindo à raça humana, herr Joseph. Nós amorosamente te abraçamos.
JORGE CLAUDIO RIBEIRO,
64, é professor titular do Departamento de Ciência da Religião da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário