Ciclo do Vaticano 2º se encerra com um
dos seus ideólogos
MATEUS SOARES DE AZEVEDOESPECIAL PARA A
FOLHA
ABRE-SE NOVA FASE, ENVOLVENDO A
APLICAÇÃO DE PRINCÍPIOS PERENES AOS DESAFIOS DO SÉCULO
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Entre os 265 papas que ocuparam a Sé
romana, o caso de Bento 16 é singular. Ele foi o único a ter renunciado por
livre e espontânea vontade.
Houve outros casos, muito poucos, mas
que não foram exatamente iguais por terem envolvido pressões e ameaças, ou seja,
foram "renúncias" forçadas. Podem citar-se Bento 9º (1032-45), Gregório 6º
(1045-46), Gregório 12 (1406-15) e o mais célebre de todos, Celestino 5º
(1294).
A abdicação de Celestino foi tão
chocante para Dante Alighieri que o poeta o colocou no Inferno de sua "Divina
Comédia". Ele vivia apartado do mundo, em uma gruta no centro da Itália. A
demora dos cardeais em escolher o sucessor de Nicolau 4º, que morrera havia já
mais de dois anos, fizeram o eremita redigir carta prevendo "graves castigos"
para a igreja.
Os cardeais decidiram fazer do próprio
eremita o papa Celestino 5º. Este, já com 80 anos, recusou o convite. Forçado,
porém, relutantemente aceitou. Mas não durou meio ano no Vaticano e o
establishment clerical pressionou-o a abdicar.
Antes, Bento 9º fora o primeiro
pontífice obrigado a abdicar, em 1045. Seu sucessor, Gregório 6º, também foi
forçado a renunciar. O penúltimo papa a abdicar havia sido Gregório 12
(1406-15). Sua renúncia estava vinculada aos esforços para pôr fim ao Grande
Cisma do Ocidente. Este incluiu o inusitado episódio em que havia três papas
simultâneos; todos foram forçados a abdicar em nome da unidade da
cristandade.
Vê-se, assim, que se o termo usado
para descrever estes poucos casos é o mesmo, isto é, "renúncia", suas
circunstâncias foram bem distintas. O único caso 100% convincente foi o de Bento
16.
Seu caráter inusitado levanta questões
sobre o futuro. Um dos aspectos é a perplexidade que engendrou. Afinal, se o
pontífice é o sucessor de Jesus Cristo, se é a "sombra de Deus na Terra", como
um religioso poderia se furtar a tal chamado?
O ato implicaria então incompreensão
da natureza profunda da função, dado que esta não envolve apenas encargos
administrativos, como foi alegado na renúncia.
O papado envolve dimensões espirituais
incomensuráveis com o trabalho de um mero CEO. Ademais, tais encargos
burocráticos poderiam ser delegados a outros. Assim, foi dada ênfase ao
temporal, ao invés de no espiritual. O cardeal polonês Dziwisz expressou
metaforicamente: "Da cruz não se desce."
Outra metáfora, dos Evangelhos, diz
que pelos frutos a árvore é conhecida. Ela cabe aqui se a abdicação for encarada
como fruto diferido da revolução iniciada na igreja nos anos 60 e que teve em
Ratzinger um de seus teólogos.
No final, fica a questão: constituiria
a renúncia sinal de esgotamento do "espírito do Vaticano 2º"? A resposta é sim:
o ciclo agora se fecha, meio século após o concílio, com o mesmo homem que foi
um de seus ideólogos.
Nova fase se abre, segundo visões como
a do "cardeal negro", Peter Turkson, de renovação espiritual, envolvendo a
aplicação de princípios e valores perenes e universais ("católicos") aos
desafios do século 21.
MATEUS SOARES DE
AZEVEDO, mestre em
história das religiões pela USP, é autor de "Homens de um Livro Só".
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