"Se uma determinada função é gravada como social, e deixa de
funcionar como tal, isso afeta toda a sociedade para quem a dita função existe
e é legalmente válida. Ela não se esgota numa relação interindividual apenas",
afirma em artigo, Jacques Távora Alfonsin, procurador
aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e
Direitos Humanos.
Eis
o artigo.
Os efeitos da função social da propriedade,
no gozo e exercício desse direito, sua influência sobre quem é proprietária/o e
sobre o próprio Poder Público, sobretudo do Judiciário, são insignificantes.
Embora a Constituição Federal faça previsão dessa função, em várias das suas
disposições, ela é muito pouco ou quase nada cogitada, quando algum conflito
por terra, por exemplo, envolvendo grande número de pessoas pobres, é submetido
à sentença judicial.
Isso pode ser provado pela não aplicação de
vários artigos dessa Constituição,
ignorados ou desobedecidos nesses casos. O artigo 5º, inciso XXXIII, por
exemplo, adverte: a propriedade atenderá a sua função social; o artigo 170,
inciso III determina: A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna,
conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
...III – função social da propriedade; o art. 182, tratando da política urbana,
prevê, em seu parágrafo 2º: a propriedade urbana cumpre sua função social
quando atende as exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no
plano diretor; e o artigo 186, no capítulo relativo à política agrícola,
fundiária e de reforma agrária, elenca vários requisitos a serem obedecidos
pela propriedade rural visando prevenir suas/seus donos, em que espaço, tempo e
modo, ela somente será considerada cumpridora de sua função social:
aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis
e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as
relações de trabalho; exploração que favoreça o bem estar dos proprietários e
dos trabalhadores.
Mesmo antes da Constituição de 1988, uma lei da ditadura como é a
do Estatuto da Terra e bem depois, como é a do Estatuto da Cidade, também buscaram impor respeito à
função social da propriedade, visando preservar o valor humano, mais do que
econômico, ínsito a um bem indispensável à vida, como é a terra. Ficasse ele
protegido contra o risco de qualquer abuso, ou mau uso ferir direito de
terceiras/os, justamente quem, necessitado de terra, fosse vítima de a referida
função não funcionar...
O Estatuto da Terra (Lei 4504/64),
em seu artigo 12, determinou que “à propriedade privada da terra cabe
intrinsecamente uma função social e
seu uso é condicionado aobem-estar coletivo previsto
na Constituição Federal e caracterizado nesta Lei.” OEstatuto da cidade,
no parágrafo único do seu primeiro artigo regulou “ o uso da propriedade urbana
em prol do bem coletivo, da segurança e do bem estar dos cidadãos, bem como do
equilíbrio ambiental”, e, na parte final do seu artigo 39, depois de colocar afunção social da propriedade urbana, afinada com o Plano
diretor da cidade, procurou assegurar “o atendimento das necessidades dos
cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das
atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2º desta
Lei.”
Por que tudo isso não vence a inoperância do
princípio constitucional da função social da propriedade, ressalvadas raras
exceções? - por uma razão muito simples, historicamente comprovada em nosso
país. O poder econômico, concentrado no capital e no mercado, tem
uma tal consciência da sua superioridade sobre o poder do Estado, que permite,
por seus representantes políticos, presentes no próprio Executivo, no
Legislativo e no Judiciário, que um tal princípio legal figure no ordenamento
jurídico, não para transferir qualquer poder a quem seja prejudicado pela sua
violação, mas sim para “legitimar” esse mesmo ordenamento, fazendo passar por
lei o que é apenas uma conveniência própria. Como está com o dinheiro na mão,
faz o que lhe convém, mesmo com o risco de ser julgado infrator, certo de que,
durante o chamado devido processo legal, não vai sofrer qualquer sanção, ou
essa vai levar tanto tempo que valha a pena tirar proveito econômico do atraso
verificado na apuração da irresponsabilidade aí presente.
O que se esquece, talvez até se quer
esquecer, na maioria dos conflitos gerados
pelo desrespeito dessa função, são os direitos de quem é vitima do
descumprimento das obrigações nela implicadas ou, quando isso chega a
acontecer, alguns ou todos os efeitos dessa ilegalidade serem irreversíveis,
como acontece, por exemplo, com os danos sofridos pelo meio-ambiente e com as
demoradíssimas ações de desapropriação de terra,
em favor de pobres morrendo à espera. Deveria servir de aviso, para se vencer
uma injustiça dessas, uma verdade mais lógica do que jurídica: se uma
determinada função é gravada como social, e deixa de funcionar como tal, isso
afeta toda a sociedade para quem a dita função existe e é legalmente válida.
Ela não se esgota numa relação interindividual apenas. Levado a juízo, um
conflito relacionado com qualquer disfunção, como ocorre frequentemente em
questões de terra, muito raramente uma tal obviedade é ponderada.
Exatamente por ser social, sendo credora do
seu funcionamento toda a sociedade, essa está legitimada por um interesse
“social”, difuso e presente, por conseqüência, em toda ela com poder juridico
capaz de ser cobrado ética, política. administrativa e judicialmente. Assim,
qualquer desvio ilegal do direito de propriedade lesa uma porção de gente indeterminada,
titulada por um interesse capaz de legitimá-la para agir materialmente em
sentido contrário. Pouco se percebe, na escandalosa concentração de terra em
mãos de poucos latifundiários, como acontece no Brasil, essa realidade
subjacente, como causa de tantos conflitos sobre ela,. Não é tratada como um
reflexo claro da desproporção existente no país, entre o espaço físico terra
exageradamente coberto pelo direito de propriedade, como criador, não só desses
conflitos, como da sua reprodução permanente, comprovada na desigualdade social revelada pelos índices
estatísticos de pobreza e de miséria ainda persistindo no país.
Jorge
Miranda, no tomo IV do Seu Manual de Direito Constitucional, quando
analisa os Direitos fundamentais (Coimbra Editora, 1993), direitos
hierarquicamente superiores aos patrimoniais, como se sabe, mostra como há
interesses difusos de todo um povo, agredidos por essa disfunção, à disposição
de qualquer pessoa dela vítima de agressão individual ou coletiva de seus
interesses difusos, como ocorre frequentemente com direitos humanos
fundamentais sociais, ser defendida perante o Estado, especialmente junto ao
Poder Judiciário:
“Aquilo a que se vai dando o nome de
interesses difusos é uma manifestação da existência ou do alargamento de “necessidades coletivas individualmente sentidas”; traduz
um dos entrosamentos específicos de Estado e sociedade e implica formas
complexas de relacionamento entre as pessoas e os grupos no âmbito da sociedade
política. Trata-se de necessidades comuns a conjuntos indeterminados de
indivíduos e que somente podem ser satisfeitas numa perspectiva comunitária.
Não são interesses meramente coletivos, nem puros interesses individuais. ainda
que possam projetar-se, de modo específico, direta ou indiretamente, nas
esferas jurídicas destas ou daquelas pessoas”
Para esses interesses alcançarem poder de
enfrentar com sucesso a desobediência de titulares do direito de propriedade à
sua função social, há necessidade de uma conscientização de todo o povo pobre,
vítima dessa desobediência, fazer valer as sanções próprias dessa ilegalidade.
Esse é um trabalho, sabidamente, nada fácil. Como adverte muito bem Miguel Teixeira de Sousa (“A legitimidade popular na
tutela dos interesses difusos”, (Lisboa: Lex, 2003) a criação de uma
consciência coletiva, para defesa de interesse difuso, não pode ser ingênua,
pensando que todo o mundo “vai pegar junto”:
“Quanto maior for o grupo, mais difícil é
conseguir uma ação coordenada entre seus membros, dado que os grandes grupos -
que M. Olson chama de “latentes”, porque possuem uma
capacidade latente para a ação - apresentam algumas características que
contribuem para desmotivar a ação individual. Nos grandes grupos, a
contribuição marginal de cada um para a obtenção dos fins do grupo é insignificante
e, em regra, não se verifica neles qualquer reação à falta dessa contribuição,
pelo que, se não houver um incentivo diferenciado e seletivo, nenhuma indivíduo
se sente motivado a colaborar na obtenção dos objetivos comuns.
A falta de incentivo para a ação contribui para as situações de free-riding, ou
seja, para as hipóteses em que alguém - um free-rider - beneficia de um bem sem
que tenha contribuído para a sua produção.” (free-rider pode ser traduzido,
literalmente, por “caroneiro”...)
Os movimentos populares, por isso, as ONGs de defesa dos direitos humanos, asDefensorias Públicas, o Ministério Público, as Comissões de direitos humanos, por exemplo, como a
da OAB, a par de suas prestações de serviço estritamente
institucionais, não podem prescindir desse esforço: a sustentação
político-jurídica dos interesses difusos violados pelo descumprimento da função social da
propriedade passa também pelo princípio democrático: ela só
funciona (!) efetivamente quando o povo vítima daquela disfunção anda junto e
muito interessado (!) nela.
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