quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Ao papa Francisco, sobre a família


Querido papa Francisco: Como hoje tudo passa tão rápido, já chegou às nossas mãos o questionário sobre a família que o senhor acaba de dirigir aos bispos de todo o mundo: 38 perguntas bem concretas, organizadas em 8 blocos temáticos.
Entendemos que não somos somente o objeto, mas, também, o destinatário dessas perguntas que nos atingem –e doem-, inclusive, mais do que aos bispos. Por isso, nos permitimos respondê-las diretamente, pelo carinho que temos por ele e pela confiança que nos inspira. Obrigado, papa Francisco, por perguntar-nos sobre tantas questões incômodas que têm sido e continuam sendo tabu! Obrigado por escutar-nos, por acolher nossas vozes saídas da alma, com suas certezas e suas dúvidas.
1. Se o ensino da Sagrada Escritura e do Magistério hierárquico sobre a sexualidade, o matrimônio e a família é conhecido e aceito entre os crentes.
Talvez não seja bem conhecido; porém, certamente é mal aceito ou simplesmente ignorado. Constatamos que nas últimas décadas, a brecha ou melhor, a ruptura entre a doutrina oficial e o sentir majoritário das/dos crentes, tem aumentando a um grau crítico. Isso é grave e nos dói. Porém, cremos sinceramente que a razão da quebra crescente não é a ignorância e menos ainda a irresponsabilidade dos crentes; mas, o fechamento da hierarquia em esquemas do passado.
Os tempos mudaram muito em pouco tempo no que se refere à família, ao matrimônio e à procriação e com a sexualidade em geral. Sabemos que são temas delicados, que o mais sagrado está em jogo, que é necessário o máximo cuidado. Porém, não se pode cuidar da vida repetindo o passado. Cremos profundamente que o Espírito da vida continua falando-nos a partir do coração da vida, com seus gozos e dores. Cremos que a Ruah vivente não pode ser encerrada em nenhuma doutrina, nem texto, nem letra do passado; e que continua inspirando o sentir de todos os crentes e de todos os homens e mulheres de hoje. Nunca nada deve ficar fechado.
Papa Francisco, o felicitamos por sua vontade de voltar a escutar a voz do Espírito nos homens e mulheres de hoje, e nos atrevemos a pedir-lhe: continue pronunciando palavras de misericórdia e de alento; não volte a "verdades” e "normas” obsoletas, que não têm sentido. Em nome da vida!
2. Sobre o lugar que o conceito de "lei natural” em relação ao matrimônio ocupa entre os crentes.
Falaremos com toda simplicidade e franqueza: para a grande maioria dos pensadores, cientistas e crentes de nossa sociedade, o conceito de "lei natural” já não ocupa nenhum lugar. Sim, a natureza que somos tem uma maravilhosa ordem, leis maravilhosas e, graças a elas, a ciência torna-se possível. Porém, a lei suprema da natureza é sua capacidade de transformação e novidade. A natureza é criadora, inventiva. Dessa capacidade criadora e inventiva, dessa criatividade sagrada nascem todos os átomos e moléculas, todos os astros e galáxias. Delas somos fruto todos os viventes, todas as línguas e culturas, todas as religiões. Dela serão fruto durante milhares de milhões de anos infinitas novas formas que ainda desconhecemos.
A natureza está habitada pelo Espírito, pela santa Ruah, que pairava sobre as águas do Gênese; que continua vibrando no coração de todos os seres, no coração de cada átomo e de cada partícula. Tudo vive, tudo alenta, tudo se move. Tudo muda. Também a família foi mudando sem cessar, desde os clãs primeiros até a família nuclear, passando pela família patriarcal, que conhecemos até bem pouco tempo.
Ante nossos próprios olhos, o modelo familiar continua mudando: famílias sem filhos, famílias monoparentais, famílias de filos/as de diversos pais... E continuará mudando, não sabemos como. Tudo é muito delicado. Há muita dor. Pedimos à Igreja que não fale mal das novas formas de família, pois já é suficiente o que têm que viver cada dia para seguir em frente, em meio às maiores ameaças que nos atingem partindo de um sistema econômico cruel, desumano. À Igreja não lhe compete ditar, mas, antes de tudo, acompanhar, aliviar, alentar, como o senhor mesmo tem afirmado.
3. Sobre como se vive e como se transmite nas famílias a fé, a espiritualidade, o Evangelho.
Questão decisiva. Constatamos com dor que as famílias estão deixando de ser "igrejas domésticas”, onde se reza, se cultiva, se respira, se transmite a boa notícia de Jesus. Porém, não cremos que seja justo culpá-las por isso. A crise da religião e da transmissão da fé na família tem que a ver, em primeiro lugar, com a profunda transformação cultural que estamos vivendo. E constitui um grande desafio não só nem talvez em primeiro lugar para as próprias famílias, mas para a própria instituição eclesial: assumir as novas chaves espirituais e formas religiosas que o Espírito está inspirando nos homens e mulheres de hoje.
4. Sobre como a Igreja enfrentará algumas "situações matrimoniais difíceis” (namorados que convivem sem ser casados, "uniões livres”, divorciados que voltam a casar-se…).
Obrigado de novo, papa Francisco, somente por querer recolocar essas questões! Obrigado por querer escutar-nos e por nomear a misericórdia em suas perguntas! O senhor conhece bem a complexa e variável história do "sacramento do matrimônio” desde o começo da Igreja, A história tem sido muito variável e continuará sendo. Por exemplo, veja o que acontece entre nós, nessa Europa ultramoderna. Nossos jovens, até os 30 anos, no melhor dos casos, não dispõem nem de casa, nem de meios econômicos para casar-se e viver com seu/sua companheiro/a. Como a Igreja pode pedir-lhes que se abstenham de relações sexuais até essa idade?
As formas mudam; porém, acreditamos que o critério é muito simples e que Jesus estaria de acordo: "Onde há amor, há sacramento; casando-se ou não, onde não há amor, não existe sacramento, por mais canonicamente casados que estejam”. Tudo o demais é detalhe. E se o casal está em dificuldades, como acontece demais, somente Deus pode ajudá-los a resolver suas dificuldades e voltar a querer-se, se isso for possível; e somente Deus poderá ajudá-los a separar-se em paz, se não puderem resolver suas dificuldades, nem voltar a querer-se.
Elimine, pois, lhe rogamos, as travas canônicas para que àqueles que fracassaram em seu matrimônio possam refazer sua vida com outro amor. Que a Igreja não continue colocando mais dor a sua dor. E que, de nenhum modo os impeça de partilhar o plano que reconforta na mesa de Jesus.
5. Sobre as uniões com pessoas do mesmo sexo.
O dano causado pela Igreja aos homossexuais é imenso, e algum dia deverá pedir-lhes perdão. Tomara que o papa Francisco, em nome da Igreja, lhes peça perdão por tanta vergonha, desprezo e sentimento de culpa carregado sobre eles durante séculos e séculos!
A imensa maioria dos homens e mulheres de nossa sociedade não podem compreender essa obsessão, essa hostilidade. Como podem continuar sustentando que o amor homossexual não é natural, sendo tão comum e natural, por motivos biológicos e psicológicos, entre tantos homens e mulheres de todos os tempos e de todos os continentes, e em tantas outras espécies animais?
Nessa causa, como em tantas outras, a Igreja deveria preceder; porém, a sociedade nos precede. Celebramos que sejam cada vez mais numerosos os países que reconhecem os mesmos direitos à união de pessoas do mesmo sexo que a de pessoas heterossexuais. E o que impede que seja chamado "matrimônio”? Por acaso não são assim chamadas as uniões heterossexuais que, por qualquer motivo, não visam gerar filhos? Mudem, portanto, os dicionários e o Direito Canônico, moldando-se aos tempos, atendendo às pessoas.
E que impede que chamemos sacramento a um matrimônio homossexual? É o amor o que nos faz humanos e o que nos faz divinos. É o amor o que faz o sacramento. E tudo o demais são glosas e tradições humanas.
6. Sobre a educação dos filhos no seio de situações matrimoniais irregulares.
Cremos que essa linguagem –regular, irregular– não é acertada; e mais, é perniciosa. Faz mal a uma criança escutar que nasceu ou que vive no seio de um matrimônio ou de uma família "irregular”. E faz mal a seus pais, sejam quem forem. O que faz mal não é ser exceção, mas ser censurado por ser exceção. Todos sabemos que basta que os casos se multipliquem para que a exceção se converta em norma. Em qualquer caso, a Igreja não está para definir o que é regular e o que é irregular; mas para acompanhar, animar, sustentar cada pessoa tal como é no lugar onde está.
7. Sobre a abertura dos esposos à vida.
Ainda bem que são contados entre nós os crentes abaixo dos 60 anos que escutaram falar da Humanae Vitae, a Encíclica de Paulo VI (1968), que declarou pecado mortal o uso de todo método contraceptivo "não natural”, todo método que não fosse a abstinência ou a adequação ao ciclo feminino da fertilidade. Porém, fez sofrer muito a quase todos os da geração de nossos pais. Essa doutrina, adotada contra o parecer de boa parte do episcopado, foi lamentável na época e não é menos lamentável que tenha sido mantida até hoje.
Atualmente, ninguém a compreende e quase ninguém a cumpre entre os próprios católicos. E poucos sacerdotes e bispos se atrevem a expô-la. Já não tem sentido afirmar que a relação sexual tenha que, necessariamente, estar aberta à reprodução. Já não tem sentido continuar distinguindo entre métodos naturais e artificiais, e menos ainda condenar um método porque seja "artificial”, pois, pela mesma razão, teriam que condenar uma vacina ou uma injeção qualquer.
Em nossos dias, assistimos a uma mudança transcendental em tudo o que tem a ver com a sexualidade e a reprodução: por primeira vez depois de muitos milênios, a relação sexual deixou de ser necessária para a reprodução. É uma mudança tecnológica que traz consigo uma mudança antropológica e requer um novo paradigma moral. A sexualidade e a vida continuam sendo tão sagradas como sempre e é preciso cuidá-las com suma delicadeza. Porém, o critério e as normas da Humanae Vitae não ajudam nisso; mas a dificultam. Que a palavra da Igreja seja luz e consolo, como o Espírito de Deus, como foi a palavra de Jesus em seu tempo e seria também no nosso.
8. Sobre a relação entre a família, a pessoa e o encontro com Jesus.
Cremos que Jesus sai ao nosso encontro em todos os caminhos, em todas as situações. Em qualquer modelo de família, em qualquer situação familiar. Cremos que Jesus não distingue famílias regulares e irregulares; mas, atende a cada situação, com sua graça e sua ferida. Cremos que encerramos em nós mesmos (nossas ideias e normas, nossos medos e sombras) é o único que nos distancia do outro e de Deus. E cremos que a humildade, a clareza, a confiança nos aproximam cada dia ao outro e cada dia nos abrem à Presença do Vivente, estando onde estamos e sendo como somos. E cremos que uma Igreja que anunciar isso, como Jesus, seria uma bênção para a humanidade em todas as suas situações.

José Arregui


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