Entrevista com Marcelo Barros, monge beneditino,
biblista e assessor de comunidades eclesiais de base e movimentos populares.
Atualmente, é coordenador latino-americano da Associação Ecumênica de
Teólogos/as do Terceiro Mundo (ASETT).
20 de fevereiro de 2013
1 - Vemos hoje que há muitas pessoas trocando de
religião, assim como também, há pessoas deixando a religião e partindo para
outros caminhos, como o ateísmo. Isso significa que religião está em crise?
Resposta: Acredito que esse fenômeno do trânsito
religioso (o fato das pessoas passarem uma Igreja a outra ou de uma religião a
outra) e o fenômeno da secularização (isso é, o aumento do número de pessoas
que se dizem sem religião) é decorrência de um mundo mais diversificado, com
mais liberdade de escolhas e contatos entre as diferentes culturas. Os meios de
comunicação e a facilidade de relação entre pessoas e grupos de diferentes
tradições religiosas fazem com que o mundo seja mais pluralista. Penso que isso
é positivo. Não é motivo de crise para nenhuma religião ou Igreja. Acredito que
a religião, ou melhor, as religiões estão em crise, sim, mas é por motivos
internos. Hoje, o desafio para as religiões é saberem se situar adequadamente
nesse mundo pluralista, aprender a dialogar com a humanidade de hoje e
testemunhar que a mensagem que trazem é pertinente, justa e diz algo de
importante para as pessoas da geração contemporânea.
2. Bento XVI chegou a afirmar que a IGREJA está em
crise. Era a isso que ele se remetia?
Não posso responder por ele, mas não creio que ele
tenha querido dizer isso. Até porque ele parece preferir uma Igreja minoritária
e pouco inserida na humanidade que seja fiel à doutrina e aos princípios de
sempre. Quando ele diz que a Igreja está em crise (está se referindo à Igreja
Católica e não a toda Igreja cristã), creio que tem em vista a crise interna da
estrutura romana. Nas alocuções e homilias feitas depois da sua declaração de renúncia, aludiu à divisão na cúpula do
Vaticano, à luta pelo poder entre cardeais e aos sofrimentos que teve por parte
de pessoas que lhe eram próximas. Sem dúvida, os escândalos com relação à
pedofilia de clérigos e à desonestidade econômica e ilegalidades no Banco do
Vaticano (IOR) o fizeram sofrer e são elementos dessa crise que ele aponta.
3. Há uma preocupação, por parte da Igreja, com a
constante perda de fieis? Se a igreja não se preocupa em ganhar novos fieis,
não deveria se atentar para garantir a permanência dos existentes?
Tomar como objetivo da Igreja ganhar novos fiéis é
confundir missão com proselitismo, ou seja, a política de conquistar pessoas. É
transformar a Igreja em uma empresa que faz propaganda de si mesma e de seus
produtos. Algumas Igrejas cristãs e alguns setores católicos caem nessa
tentação. Jesus mandou seus discípulos testemunharem e anunciarem o projeto
divino no mundo (que o evangelho chama de reino de Deus). Propaganda da própria
Igreja é outra coisa. É claro que a Igreja tem um compromisso de servir a seus fiéis.
Se uma pessoa quer deixar a Igreja Católica por motivo de consciência, é seu
direito e a Igreja não deve fazer nada para impedir. Agora se alguém deixa a
Igreja porque não encontra mais nela aquilo que precisa para viver sua fé, aí a
Igreja tem de se rever e se perguntar se ainda tem alguma razão de ser.
4. Em pronunciamento, Bento XVI pediu a renovação
da Igreja e disse: "Temos que trabalhar verdadeiramente para que se
realize o segundo Concílio do Vaticano e que se renove a Igreja”. As diretrizes
do Concílio, que foi aprovado na década de 1960, atendem ao crescente apelo por
renovação da Igreja?
Nos anos 60, o Concílio foi uma verdadeira
primavera para a Igreja, um tempo de renovação (João XXIII o definiu: um novo
Pentecostes, isso é, começo novo para a Igreja sob a inspiração do Espirito). É
claro que um acontecimento que foi renovador há 50 anos, agora precisa ser
reinterpretado para a realidade de agora. Comumente, no mundo, uma organização,
cultural e social, pensaria que princípios emanados há 50 anos já estariam
superados. De lá para cá o mundo mudou tanto que são necessário critérios novos
e novas diretrizes. Com a Igreja Católica, contudo, o que ocorreu é que sob a
influência muito centralizadora dos dois últimos papas, o que existe de mais
novo hoje ainda é a proposta de renovação emanada do Concílio Vaticano II.
Depois do Concílio e dos anos de sua aplicação, nada se fez de mais renovador
ou que buscasse uma atualização da missão, do modo de expressar a fé e da
organização da Igreja. Por isso, de fato, a única referência que temos que pode
responder ao apelo de renovação da Igreja é o Concílio Vaticano II e na América
Latina, a conferência do episcopado latino-americano em Medellin (1968). Se
conseguirmos que a Igreja, hoje, retome esse espírito, já será uma maravilha.
5. O papa João Paulo II classificou o Concílio como
"um momento de reflexão global da Igreja sobre si mesma e sobre as suas
relações com o mundo”. Essas relações são, ainda hoje, levadas em consideração?
O Concílio significou um tempo de grande diálogo da
hierarquia da Igreja Católica com a humanidade do seu tempo. No Concilio, o
papa e os bispos deixaram de ver os tempos modernos como algo negativo e
perigoso para a fé. Nas últimas décadas, esse diálogo foi rompido e a
modernidade de novo passou a ser vista como simplesmente negativa. (É bom a
gente ser críticos, mas não pessimistas e movidos pelo medo). É preciso retomar
o diálogo como princípio espiritual e elemento fundamental da missão da Igreja.
6. Ao pedir essa renovação, Bento XVI disse que
isso implicará em um combate espiritual, "porque o espírito do mal quer
nos desviar do caminho de Deus”. Essa afirmação remete a alguma contenda
política na Igreja?
Só ele pode afirmar exatamente o que quis dizer com
isso. De fato, a espiritualidade é sempre um constante combate interior, cada
pessoa consigo mesma. Essa luta pela conversão pessoal e comunitária transforma
a Igreja em suas estruturas para que ela não se torne uma empresa qualquer.
Conforme o rabino Nilton Bonder, na tradição judaica, o termo hebraico Satã (no
grego diabolos) significa não uma pessoa ou entidade externa a nós, mas
um bloqueio na conexão entre a pessoa e o Espírito. O demônio seria uma
energia que cria obstáculo no caminho da saúde e da integração interior(1)[1]. Jon Sobriño, teólogo
salvadorenho, escreveu: "O conteúdo concreto da tentação que Jesus
enfrentou foi o uso do poder que Jesus poderia ter para exercer sua missão. Ele
o rejeitou”(2)[2].
7. Mas, então, isso significa que existe mesmo
algum conflito interno e político na cúpula da Igreja?
Embora assistida pelo Espírito Divino, a Igreja é
feita de homens e sua hierarquia é humana. Alguém acha estranho que em uma
instituição do tamanho da Igreja e com sua importância hoje no mundo haja
tendências diferentes, grupos opostos e no próprio Vaticano em um momento como
esse isso apareça? Penso que imaginar o contrário seria querer uma Igreja de
anjos e seres celestiais e não de pessoas humanas concretas. Acho normal que
haja esses conflitos. O que não é normal seria usar métodos antiéticos para
desqualificar o outro lado e vencer de qualquer modo.
8. Concretamente, como seria isso?
A Bíblia nos diz para não tomar o nome de Deus em
vão. Acho uma vergonha todo mundo saber que no Vaticano, grupos se digladiam
pelo poder e quando são perguntados, todos respondem: É o Espírito Santo que
decidirá. Isso é chamar as pessoas de idiotas. Creio e espero que o Espírito
Santo inspire e guie as pessoas que votarão, mas não creio em ato mágico e nem
de incorporação espírita na hora da votação. As pessoas são humanas e em
consciência votarão como pensam, mesmo se invocarem o Espírito para poderem
discernir o que é melhor para a Igreja. Desejo muito que o resultado reflita a
vontade de Deus, mas isso não é mecânico e automático. Na história houve papas
que fizeram muitas coisas boas e bonitas, mas houve também papas que agiram
muito mal e será que esses foram escolhidos também pelo Espirito Santo? Ou foi
um erro dos cardeais? Com a eleição papal, ocorre como nós cremos que ocorre
com a própria palavra da Bíblia: é inspirada por Deus, mas nem por isso deixa
de ser humana, o que significa, é cultural, é social e política e condicionada
ao momento presente e a todas as circunstâncias da história. É isso que o
evangelho diz quando proclama que o Verbo, isso é a Palavra Divina se fez carne
(João 1, 14).
9. O que o senhor acha da Teologia da Libertação?
Se Jesus é salvador e disse que o Espírito Santo o
ungiu para anunciar aos empobrecidos a libertação (Lucas 4, 16 ss), então, toda
a fé cristã e toda teologia deveria ser libertadora. Não se trata de uma
teologia sobre a libertação. Isso não é tão importante. O importante é que a
teologia seja qual for colabore para que a humanidade tenha mais vida, mais
saúde e mais alegria. Jesus disse: Eu vim para que todos tenham vida e vida em
plenitude (João 10, 10). Então a teologia deve visar à libertação. Em 1968, os
bispos católicos da América Latina, reunidos em Medellín definiram: A Igreja
precisa ser pobre e missionária, comprometida com a libertação de toda
humanidade e de cada pessoa humana em sua integralidade (libertação moral,
libertação espiritual, libertação cultural, libertação social, econômica, etc).
(Cf. Medellín, documento sobre Juventude 5, 15). Não vejo em que isso ficou
superado. Nem o mundo melhorou tanto depois de 68 que isso se tornou
desnecessário (ao contrário, a pobreza se agravou) e nem o evangelho perdeu sua
atualidade. A teologia da libertação, hoje, deve assumir novas tarefas e nova
linguagem, mas é sempre necessária e atual.
10. Analistas pontuam que o cardeal Ratzinger
investiu contra a Teologia da Libertação, na América Latina, assim como contra
os teólogos jesuítas na Europa, o feminismo e a homossexualidade. A rigidez
dele e de João Paulo 2º os levou a tentar sufocar as discussões sobre os padres
casados e o celibato, a ordenação de mulheres, a contracepção e o aborto. Essas
questões devem ser discutidas de forma mais aberta pela Igreja?
Em 1962, ao abrir o Concílio Vaticano II, o papa
João XXIII afirmou que a Igreja manteria sua fé de sempre, mas se empenharia em
expressá-la de uma outra maneira. Ele explicou que se pode afirmar a fé de modo
que divida as pessoas e provoque sofrimento e se pode afirmar a mesma fé de
modo que una. A fé é a mesma, mas a sua expressão pode variar e isso vale para
a doutrina, inclusive disciplinar e moral. No Evangelho, Jesus nunca se negou a
dialogar com as pessoas e soube adaptar-se à realidade delas, Rezo para que
toda a hierarquia da Igreja Católica aprenda a fazer isso. Quem quer que seja, padre,
bispo ou papa, tem o direito de pensar como quiser; mas, como ministro de
Jesus, é chamado a dialogar e abrir-se a uma atitude acolhedora e amorosa com
todas as pessoas que o procuram ou pedem a sua palavra.
11. Com dois antecessores poliglotas e que se
relacionaram de forma assídua com o mundo, o que deve ser levado em
consideração na escolha do próximo papa? Esse fator relacional irá pesar na
escolha? Ele deverá ser um bom relações-públicas?
Pessoalmente, como crente e como teólogo, desejo e
oro para que os cardeais que se reunirão proximamente em conclave percebam que
em um mundo como o nosso não tem nenhum sentido manter o ministério do papa
como uma monarquia absoluta medieval de direito divino e com jurisdição no
mundo todo. E ainda dizer que isso vem do tempo dos apóstolos e é vontade de
Deus. Se a Igreja aceitasse voltar ao estilo do primeiro milênio do
Cristianismo, o papa deveria ser escolhido com o critério de ser bispo de Roma,
patriarca da Igreja latina, ponte (pontífice) da unidade de todas as Igrejas,
mas a partir do respeito à autonomia das Igrejas locais que não são filiais de
uma organização internacional e sim verdadeiras Igrejas, com todos os elementos
da Igreja universal. Para resumir, nada de papa brasileiro ou africano. Papa
deve ser italiano, de preferência romano que seja verdadeira e plenamente bispo
de Roma e coordene a comunhão das Igrejas locais de forma sinodal e colegial,
como quis o Concílio Vaticano II.
12. Qual o caminho a ser seguido pela Igreja nos
próximos anos?
Como já afirmei, voltar ao espírito do Concilio
Vaticano II e revalorizar as Igrejas locais como verdadeiras Igrejas e não
apenas como sucursais do Vaticano. Nesse mundo autoritário e excludente em que
vivemos; dar o exemplo de dialogar; e estabelecer uma agenda de discussões com
a humanidade que toque nas grandes questões sociais, humanas, éticas e
culturais. Penso que é importante intensificar a aproximação com as outras
Igrejas e religiões e com elas realizar um fórum de todas as tradições
espirituais pela paz, justiça e defesa da natureza criada por Deus. E aí sim a
Igreja saberá enfrentar as questões internas da igualdade entre homem e mulher
nos ministérios e superar normas disciplinares que valeram para outras épocas,
mas hoje não são sinais da realização do projeto divino no mundo.
[Marcelo Barros é monge beneditino, biblista e
assessor de comunidades eclesiais de base e movimentos populares. Atualmente, é
coordenador latino-americano da Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro
Mundo (ASETT). Tem 44 livros publicados].
Nenhum comentário:
Postar um comentário